Ficção - Allegro. Ma non troppo.
Manhã de um dia útil por inventar. Lá em cima há um sol ou uma nuvem, um bulício caótico ou uma modorra infinita, uma vida ou uma morte. Que interessa? No metro não há nada disso. Há apenas uma carruagem apinhada e monocromática, a despeito das milhares de cores envergadas pelos milhares de transeuntes que, por mais refulgentes que sejam, não conseguem emprestar os seus matizes policromáticos ao profundo e dantesco negrume do dia. E há outra carruagem. E mais outra. E ainda outra. E nelas, mil e uma pessoas e três, quatro ou cinco mil e uma faces, porque uma pessoa não tem só uma face e é caso raro aquele de uma criatura humana que apenas ostente duas. Pessoas entram e saem de estações tendencialmente coloridas com sorrisos gradativamente cinzentos à medida que a hora de picar o ponto se aproxima. Pessoas atropelam-se. Pessoas digladiam-se. Pessoas correm, correm, correm...
O homem do acordeão não percebe o porquê disso. Talvez um dia já tenha percebido, mas desde que começou a fazer soar a sua triste melodia na carruagem 321, aquela que passa sempre às 8:37 na estação do Campo Grande, esqueceu o porquê daquela vida que corre todas as manhãs perante ele, perante as suas cantigas e as suas infelicidades. Allegro ma non troppo, parece ser esse o tempo do movimento daquela sinfonia antropizada, de compasso marcado por duas mil e uma pernas que não param, melodia do quotidiano, sinfonia sublime e medonha que algum compositor se esqueceu de anotar numa cinzenta e apressada pauta musical. Aquelas pessoas sem cor que envergam vestimentas coloridas desmultiplicam-se em colcheias e semicolcheias, sem pausas, com compasso individualmente definido e colectivamente anárquico, pelo menos em aparência. Não há tempo para mínimas ou semínimas, porque essas são notas musicais demasiado lentas e arrastadas para quem tem um passo tão ligeiro e fugaz. Mas o acordeonista insiste em fazer soar a sua ladainha carregada de semibreves e pausas, preenchida por erros, Adagio molto, num perpétuo e pungente movimento de braços e dedos que é apenas interrompido pelo tinido metálico de uma moeda de cobre a cair no copo de plástico que repousa aos seus pés, ao qual ele responde com um silêncio breve e um respeitoso, formal e mecânico inclinar de cabeça para a frente. E, após esse momento de reconhecimento monetário pela banda sonora daquela manhã que algum passageiro realizou com um esgar de repulsa e enfado, o movimento da canção acelera um pouco: é agora Andante, saltita ao ritmo dos solavancos da carruagem e, nos ouvidos de quem segue sentado, imiscui-se indissociavelmente com o soar de mil e uma vozes sem dono que preenchem e dão conteúdo ao comboio subterrâneo.
Acontece, por puro acaso, que uma das sombras sentadas se ergue subitamente ao fim de uma canção e se dirige paulatinamente para o acordeonista. Esse, habituado a desconfiar da presença e da aproximação das pessoas, - porque ele já não se considera mais uma pessoa e porque ninguém se aproxima dele, excepto de forma fugaz e amedrontada - engana-se no compasso da música seguinte, troca o tempo, em cinco segundos vai do pacato Andante ao atrevido Vivace que os seus dedos nunca ousam tentar. Erra, finalmente, as notas. Mas a sombra feminina que se acercou entretanto dele devolve-lhe um sorriso, coloca uma moeda de dois euros no copo de plástico e diz-lhe, num tom de voz afável e comovido que não conseguiu apagar da sua face enrugada duas tímidas lágrimas:
"Agradeço-lhe por ter tocado a canção da minha vida. Fez-me feliz."
O acordeonista não disse uma palavra: limitou-se a responder com um sorriso sincero e resplandecente, o que não seria revelador de um sentimento de gratidão excepcional, não fosse esse o seu primeiro sorriso genuíno em anos de mendicidade. Interrompeu aquele concerto que ninguém pedira, que incomodava muita gente e ao qual poucas pessoas retribuíam com uma moeda. Parou para olhar em volta, reparou pela primeira vez nas mil e uma faces da humanidade e constatou, por entre uma lágrima que foi como uma dádiva para a sua pele ressequida e suja, que algumas dessas faces resplandecem de reconhecimento, de alegria, de felicidade, de compaixão. Pena que as faces negativas as soterrem e as atolem de hipocrisia, cinismo, máscaras de indiferença, vil racionalidade.
O tempo do movimento daquela sinfonia popular que o acordeonista agora entoa é Allegro, ma non troppo. É o tempo da vida. E faz sentido que assim o seja, porque num fugidio momento, o homem do acordeão sentiu-se, pela primeira vez, incluído nesse livro interminável e insondável que é o da vida. É também o tempo da felicidade, esse movimento áureo e de plenitude que ele agora acredita ser possível desvendar, atingir, folhear, ler como se de uma pauta musical se tratasse e converter em melodia divinal. Uma melodia que não se quer em Adagio nem em Prestissimo, mas sim em Allegro. Ma non troppo.
O metro chegou ao seu destino final. O acordeonista sai, carregando consigo o pesado e velho acordeão que fora do seu bisavô e o doce peso de uma nova e inebriante novidade, a descoberta de que, por entre movimentos incessantes, perpétuos e carregados de indiferença, é possível encontrar-se o movimento da felicidade. Num tempo Allegro. Ma non troppo.
Daniel L. Campos
3 Comments:
Já tinha tido a oportunidade de ler este texto e já te tinha dado a minha opinião. Excelente estreia tua neste blog, amigo Daniel
Que dizer!?...
Que gostei?..É muito pouco!
ADOREI!!!
Tocou-me ..emocionou-me...e estive lá , tb eu escutei o " Allegro. Ma non tropo"...tb eu vi as mil e uma faces da humanidade...
Fiquei sensibilizado com comentários tão positivos! Assim até dá (ainda mais) gosto despejar ideias e sentimentos no "papel"! :)
Daniel C.
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