Coluna IRanimA

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terça-feira, novembro 28, 2006

José pegou na fotografia que repousava sobre a mesa-de-cabeceira. Nela, ele sorria. E ela também. Mas ela não estava ali com ele. É verdade que acabara de a ver, mas não era a mesma coisa. Há dois meses que ela não esboçava um sorriso, nem um movimento, nem uma palavra. Há dois meses que ela não o olhava, não o beijava, não o amava. Isto porque haviam passado sessenta dias desde que a sua esposa entrara em coma, na sequência de um acidente vascular cerebral, evento infrequente em pessoas de meia-idade, e fora internada no hospital da cidade, a doze quilómetros de distância da vila. E desde então, um vazio instalara-se no local da mente de José onde antes morava a imaginação, o dinamismo, a vontade de viver. Emocionalmente derrotado, meteu baixa por tempo indefinido para poder seguir a situação da sua mulher, bem como para tentar endireitar o seu próprio mau estado psicológico. Por diversas vezes, ao longo desse tempo, cogitara consultar um psicólogo ou um psiquiatra, mas abandonara tais intentos quando, após sucessivas reflexões, concluiu que não seriam algumas horas de conversa paga que lhe trariam a sua mulher e, consequentemente, a sua alegria e imaginação de volta. Não, o problema dele nascia no dela, como se eles fossem duas gotas de águas provenientes de uma mesma nascente doente. E nenhum psicólogo tem o poder de tratar um manancial tão vivo, tão poderoso, tão belo como aquele que os une.
Nesse final de manhã do dia 1 de Dezembro, quando ele parou junto à praia, tinha acabado de vir do hospital, onde falara com o médico responsável pela sua mulher. Este dissera-lhe, uma vez mais, que as lesões cerebrais eram já extensas e que, mesmo que ela recuperasse, iria fazê-lo à custa de algumas capacidades intelectuais. José parecera não acreditar nessas palavras pessimistas do clínico. Perguntara-lhe, num tom de voz embargado, se ela o conseguia ouvir, se aqueles poemas que ele lhe recitava todas as manhãs eram por ela sentidos como ternos afagos, como ansiosos beijos.
- É improvável que os oiça. – respondera o clínico – Mas ainda não sabemos explicar ao certo todas as reacções que ocorrem, a nível cerebral, durante o coma. Se isso o faz sentir bem, tem o nosso aval para lhe ler os seus poemas, senhor José.
- É que, sabe, – continuou José – esgotaram-se-me os poemas. Sou um poeta que não tem nada de novo para oferecer à sua própria mulher. Por isso, trago hoje comigo um leitor de cassetes dentro deste saco, bem como uma cassete que ela gravou, onde recita Camões, Pessoa, Florbela e Cesário Verde. Ela tem uma voz maravilhosa, senhor doutor. E pode ser que reconheça na cassete a sua voz, talvez isso a faça despertar.
O médico devolveu-lhe então um sorriso amarelo, rematando:
- Está à vontade. Tenha é atenção ao volume, há outras três doentes na mesma sala onde ela está, como sabe.
- Terei cuidado, senhor doutor. Agradeço o seu consentimento.
José entrou na enfermaria com passos curtos e silenciosos para não disturbar as pessoas que ali se encontravam internadas, mas tal provou-se desnecessário porque, das três outras doentes que ali esperavam uma cura, duas ainda dormiam e a terceira estava, tal como a esposa de José, em coma, deitada numa das camas que se situavam junto à parede distal, local onde havia material médico mais avançado que permitia aí a permanência e vigilância de doentes em estado comatoso. Ele pousou o saco que transportava o leitor de cassetes na mesa que se encontrava ao lado direito da cama, junto à parede, puxou a cadeira e sentou-se ao lado dela. Como era seu costume desde que ela dera entrada no hospital, não lhe tocou: custava-lhe sentir aquela pele que antes transpirava ternura, afecto e calor, mas que agora não passava de uma cútis empedernida, qual estátua de branco alabastro. Não, aquela não era a esposa dele, pensava José por vezes. Não, aquela não era a sua vida, tudo não passava de um pesadelo que ansiava pelo momento em que a mente que o concebera fosse acordada por uma tempestade ou por um despertador.
Colocou os óculos como se fosse ler e deu-lhe os bons dias:
- Bom dia, minha princesa.
Tossicou como que para aclarar a voz, pegou num caderno vazio que guardara dentro do saco juntamente com o leitor de cassetes, abriu-o, folheou-o e mostrou-o à sua esposa que, naturalmente, não viu as páginas em branco. Nisto, ele falou:
- Estás a ver? Já te li todos os meus poemas, agora só me sobra um caderno em branco, despojado das minhas palavras e dos meus sentimentos. Desde que estás aqui, perdi a minha fonte de inspiração, a Rocha não é nada sem a tua presença na minha vida. Fazes-me falta.

José calou-se. Com um semblante austero, fechou o caderno e pousou-o em cima da mesa. Retirou também os óculos da sua cara, colocando-os fechados sobre o caderno. Depois, permaneceu quieto durante algum tempo, observando-a de alto a baixo, como que tentando vislumbrar o mais pequeno esboço de movimento que ela pudesse gerar. Certo dia, ele quase jurara ter reparado num leve mover do polegar da mão esquerda dela, mas logo inferiu que tal não passara de impressão sua, até porque os médicos não se coibiam de lhe explicar que a evolução do estado clínico da sua esposa não estava a ser, de todo, favorável. Mas ele acreditava que um milagre era possível e, na esperança de ser ajudado por intermédio de alguma improvável intervenção divina ou astrológica, ia vê-la todas as manhãs, na hora de visita daquela enfermaria, demorando-se junto a ela durante cerca de uma hora, como se ele fosse a lapa que teima em não se separar da rocha inerte, fria, dura e áspera. Por volta do meio-dia, ele saía sempre do hospital, até porque o horário dedicado às visitas findava por essa altura, só se admitindo novamente a presença de familiares junto aos doentes por volta das cinco da tarde, dado que as habituais visitas médicas naquele serviço decorriam após a hora de almoço, ao contrário do que era prática corrente noutros serviços em que essas mesmas visitas eram feitas, preferencialmente, num período mais matinal. Certo dia, José fizera essa mesma observação a uma enfermeira, que lhe explicara prontamente o motivo de tal rotina:
- É que os médicos deste serviço estão nas consultas externas durante a manhã.

Mas José, na verdade, preferia estar junto da sua esposa durante a manhã, e nem sequer aparecia por lá no horário vespertino. Isto porque ele acreditava que ela, na verdade, dormia um sono muito profundo, sendo mais provável acordar dele durante a manhã do que ao fim da tarde – é mais trivial e concebível acordar de manhã após uma noite de repouso do que despertar ao fim da tarde na sequência de um dia de descanso. E José queria estar lá quando ela levantasse as pálpebras, queria ser ele a olhá-la pela primeira vez após o seu sono reparador e a dizer-lhe, num silêncio repleto de sentimentos e palavras, que ainda estava lá para ela, que ainda a amava. Queria sentir o doce aroma da sua expiração junto à sua face outra vez. Queria ouvir a sua voz melodiosa junto aos seus ouvidos outra vez. Queria acreditar, queria escutar, queria cheirar, queria viver de novo.
- Como já não tenho mais poemas, – disse ele enfim, quebrando aquele longo silêncio que pareceu durar uma eternidade, embora o relógio não acusasse mais de cinco minutos de avanço desde que ele pousara o caderno e os óculos na mesa e começara a admirar, de alto a baixo, a sua esposa – trouxe algo que, creio eu, vai trazer-te recordações felizes. Trago comigo a cassete de recitação de poesia que gravaste há quatro anos, quando editei o primeiro livro de poemas, acho que te lembras. Sim, vejo que te lembras… – e José sorriu, imaginando que a sua esposa lhe devolvia um gesto afirmativo.

Colocou a cassete no leitor e carregou no botão de play, fazendo assim soar o bucólico som de uma flauta de pan, bem como a primaveril melodia do chilrear de pardais, rouxinóis e pintassilgos. Sobre essa cama musical de sonho, impôs-se uma voz cristalina e harmoniosa, uma voz tão bela como o mais belo dos cantos das aves. E essa voz feminina começou a entoar um dos mais lindos poemas de Florbela Espanca num tom tão inebriante e pungente, que seria certamente capaz de fazer estremecer até as cordas de um coração infeliz, incitando-as a entoar a mais bela das canções. E foi, em cada verso, em cada palavra e em cada rima um recital sublime, uma ode aos deuses e aos sentimentos humanos mais belos, o folhear de um livro dourado preenchido pelas mais belas das palavras. José sentiu-se, de facto, o “rei do Reino de Aquém e Além dor” ao ouvir aquela gravação, porque não conseguiu esconder uma lágrima inicialmente tímida mas que, com o evoluir do recital e do soneto, depressa se tornou numa pequena cachoeira salgada que começou a cair sobre os lençóis da cama onde ela repousava sem esboçar o mais leve gesto, sem desenhar a mais leve réplica face àquele primoroso momento. José não aguentou mais. Se aquela récita tão comovente não lhe despertava sentimentos, nada o poderia fazer. Premiu o botão de stop, arrecadou todas as suas coisas no saco, enxugou as lágrimas, recompôs-se, levantou-se e despediu-se da forma usual:

- Bons sonhos, minha princesa.

1 Comments:

Blogger Paz Kardo said...

Bem, acho que tenho um relatório a apresentar ao Doutor, cara Ana.

10:36 da manhã  

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